Mônica Cunha é uma lutadora e basta olhar e escutar para ter certeza. Mulher, negra, do subúrbio do Rio de Janeiro, criou três filhos.
Há 14 anos, sua vida virou de ponta-cabeça. Um de seus filhos, Rafael, de 15 anos, foi apreendido pela polícia depois de participar de um roubo. A dor como mãe a conduziu por caminhos de aprendizado e de mobilização. Hoje, ela se orgulha de ser uma das fundadoras do Movimento Moleque, que promove direitos de adolescentes que estão no sistema socioeducativo e seus familiares.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) se transformou em seu livro de cabeceira. Depois de mais de 10 anos de dedicação, ela sabe como poucos onde estão os problemas e como poderiam ser algumas soluções. Nesta entrevista exclusiva à Anistia Internacional, ela fala sobre sua história de vida, suas motivações, maioridade penal e os 25 anos do ECA.
Anistia Internacional – Como nasceu o Movimento Moleque?
Porque tive um filho, o filho do meio, o Rafael que veio a cometer o primeiro ato infracional aos 15 anos, em 2001.
Eu morava em São Cristóvão [Rio de Janeiro], trabalhava numa pensão onde vendia quentinhas. Certo dia, me ligaram da delegacia dizendo que o meu filho estava preso. Eu não acreditei e bati o telefone. Em seguida, uma detetive ligou com todos os meus dados pedindo que eu comparecesse à DPCA – Delegacia de Proteção à Infância e ao Adolescente.
Quando cheguei à delegacia, meu filho estava algemado e sujo, como se o tivessem arrastado pelo chão. Eu fiquei desesperada e até este momento eu não sabia o que tinha acontecido. Corri para abraçar meu filho, mas um dos policiais que estavam ao lado dele, o segurou e falou para mim: “Na hora que vocês estão parindo bandido, não percebem. Aí a gente vai na rua para limpar e vocês vêm cheias de amor. Aí o bandido tem mãe.” Eu, abusada, simplesmente respondi: “Quando eu pari meu filho, o médico só disse que foi do sexo masculino. Não disse que era bandido não”.
Isso me fez enxergar a necessidade de criar o Movimento Moleque, que nasceu no dia 10 de dezembro de 2003, com as mães dos meninos de todas as unidades do Padre Severino (unidade do sistema socioeducativo da cidade do Rio de Janeiro), vestidas de preto e viradas de costas para a porta da instituição.
O Movimento Moleque é de denúncia, de reivindicações. Ele apresenta para as famílias de adolescentes cumprindo medida socioeducativa os direitos que elas têm, e os ajuda a cobrar sua implementação. É para empoderar estas mães, porque elas vão poder não só se ajudar, como ajudar os meninos.
Antes do Estado controlar esses jovens, quem deve fazer isso são as mães. Foram elas que deram a vida para esses meninos, não o Estado. E são elas que cobram para que o Estado implemente o Estatuto da Criança e do Adolescente.
AI – Como foi sua experiência no sistema socioeducativo com o Rafael?
Eu fui com meu filho ao Degase – Departamento Geral de Ações Socioeducativas e, ao chegarmos lá, a assistente social perguntou nosso endereço. Quando eu disse “São Cristóvão”, ela disse que colocaria meu filho no bloco do Comando Vermelho. Eu tomei um susto e respondi “Quem comanda meu filho sou eu!”. Só então ela me explicou que devido ao local onde morávamos, se ela o colocasse em um bloco de outra facção, ele poderia ser assassinado.
Rafael, até os 17 anos, teve quatro entradas no Degase. Quando ele foi para a internação, levaram para o Educandário Santo Expedito. Quando eu cheguei para visitar, já sabia que eu precisava fazer alguma coisa, mas ainda não sabia o quê.
Em uma das minhas visitas, houve uma rebelião dos meninos contra os agentes. Nestas rebeliões, quem sempre sai perdendo são os meninos, porque os agentes ‘metem a porrada”. Esta não foi a principal violência que o meu filho sofreu lá dentro, mas ela de fato acontece.
Quando as mães entraram, os meninos estavam todos machucados, nós podíamos ver as marcas. Eu não aguentei. Levantei e disse: “Isso não pode mais continuar assim. Eu não pari meu filho para vocês baterem. Se fosse para bater, eu mesma fazia na minha casa.”
Eu pedi para falar com o diretor, fui como representante dos pais. O diretor quis fazer um acordo, pois ele dizia que que não sabia de nada. Não via nada, não escutava nada e que toda a culpa era dos funcionários.
AI – E o que você fez?
A partir daí eu passei a fazer um trabalho, que era o que estava no Estatuto da Criança e do Adolescente, mesmo sem saber exatamente o que era o ECA. Eu acompanhava as reuniões, pedia para entrar para ver como eles se comportavam nos dias de semana etc. Por eu estar fazendo isso, um dos agentes me deu o ECA de presente e disse para mim: “Dona Mônica, lê o estatuto na parte de adolescente autor de ato infracional. O que a senhora não entender, escreve no cantinho que depois eu explico”. Aí eu fui entendendo, que aqueles meninos tinham direitos, por mais que tivessem cometido ato infracional.
Enquanto eu esperava nas filas para a visitação aos domingos, eu já via a necessidade de conversar com essas famílias. Eu percebia nas conversas que as pessoas tinham origens humildes, em geral o nível de escolaridade era mais baixo que o meu e não tinham informação nenhuma. Eu comecei a pensar “Não sou só eu que preciso saber do Estatuto não, esse povo também precisa”.
Então aos domingos, nas visitas do Santo Expedito, eu combinava com o pessoal de chegarmos às 8h da manhã, e tinha uma pedra onde eu sentava e ficava lendo o Estatuto com todo mundo. O que elas me perguntavam que eu não sabia responder, eu perguntava para o agente e respondia na outra semana. Fiz isso durante uns dois meses.
Também fiz esse trabalho com os meninos. Peguei um Estatuto dei para um que levou para dentro da internação e que fazia a mesma coisa.
AI – E isto cresceu, não foi?
Aí eu quis aprender mais. Esse mesmo agente que me deu o estatuto de presente, me apresentou as organizações não-governamentais (ONGs). Tinha uma chamada Fundação Bento Rubião, que era uma grande instituição de direitos da criança e dos adolescentes na década de 90 (hoje só trabalha com terra e habitação). Eles tinham um projeto do Ministério da Justiça para trabalhar com os jovens infratores e seus familiares, com o dinheiro depositado na conta deles, só não tinham um público. E quando eles perceberam que eu conseguia liderar aquele público, e que todos me ouviam, eles decidiram: é essa que vai levar o projeto até as famílias.
Foi então que a Fundação Bento Rubião me chamou para trabalhar com eles. Lá eu descobri o que eram os Direitos Humanos e foi com nascer de novo. Trabalhei em diversas instituições, não só com jovens infratores, mas também com adolescentes de rua; que sofrem exploração sexual etc. Eu queria entender como um adolescente se torna autor de um ato infracional. Porque na minha cabeça, eu nunca aceitei que se dormia de um jeito e acordava ladrão.
AI – E você chegou a alguma conclusão?
Sim: que o adolescente se torna infrator, não nasce assim. E isso acontece por diversos motivos. Por conta do meio e do convívio. Ele pode ter sofrido violência doméstica, mesmo que não seja fisicamente. Ou vive um desamor dos pais. Isso acontece muito porque a gente vive hoje num mundo em que o capitalismo faz você procurar dinheiro 24 horas por dia. Não tem dinheiro que dê. Assim, a gente não tem tempo nem para a gente, imagina dedicar tempo ao outro? A gente vive dentro de uma guerra e os meninos estão sendo criados no meio disso tudo. E você sem tempo, deixou de passar os valores que seus pais te ensinaram para os seus filhos. É muito difícil educar filho quando se sai de casa às 4h da manhã para trabalhar e só volta às 10h da noite.
AI – Você acha que a redução da maioridade penal pode ajudar esses jovens?
A redução da idade penal não ajuda estes meninos. Este assunto está muito forte por conta dos empresários e das privatizações dos presídios. A privatização é para dar dinheiro e, para isso, eles vão precisar dos presídios cheios. Quem é que vai estar lá dentro? É o adolescente, é o jovem, e não é qualquer jovem. É o jovem negro, porque é este jovem que está sendo criminalizado. São estes que estão sendo assassinados, são estes que estão sendo encarcerados. Hoje em dia a medida socioeducativa tem cor: negra. O sistema penal tem cor: negra. E o cemitério, tristemente, também tem cor: negro.
Hoje os meninos não estão tendo nem tempo de chegar no sistema prisional aos 18. Eles estão morrendo antes.
AI – Qual é a solução na sua opinião?
A solução é a educação. Não só aquela que você aprende português e matemática na escola. Estou falando de educação que fale de cidadania, que diga de onde você veio, quem é você, qual é o seu papel na sociedade. Que responda o porquê de um adolescente autor de ato infracional branco, morador de Ipanema ter um tratamento diferenciado em relação ao adolescente autor de ato infracional morador do Complexo do Alemão. Que responda o porquê de o primeiro adolescente receber liberdade assistida e o morador do Alemão ser internado no sistema socioeducativo, mesmo os dois tendo cometido o mesmo crime.
AI – Você acha que se fosse possível implementar de fato as medidas previstas no ECA resolveríamos o problema?
Sim. A questão é que as pessoas saíram falando “Reduza, reduza, reduza [a idade penal], mas nunca conseguiram implementar as medidas socioeducativas. Nem sabem se dá certo ou não.
No dia 13 de julho, o ECA completa 25 anos e há 22 anos pede-se redução da maioridade penal. Por que querer mudar algo que nem se sabe se dá certo ou não? Talvez porque se implementar, vai dar certo. Se educar, se der suporte, estes meninos podem ser doutores amanhã. Mas eles serão doutores negros e isso muita gente não quer. A questão da redução da maioridade penal é também uma questão racial.
AI – E se você pudesse dizer alguma coisa a estas pessoas que apoiam a medida?
Eu diria que pelo menos leiam o Estatuto da Criança e do Adolescente. Quando vemos as pessoas que são a favor da redução da maioridade penal, muitas delas expressam ódio, raiva, vontade de que quem está naquela situação, não seja só punido, mas que sofra. O debate não deve ficar apenas no “sou contra” ou “sou a favor”. Que estas pessoas procurem se informar, porque se não nos preocuparmos com o outro, se ficarmos em cima do muro e não fizermos nada para ajudar, nós seremos responsáveis. Estaremos ajudando a colocar adolescentes no sistema prisional e acabando com todas as esperanças desses jovens. Não só deles, como de toda a família.
Entrevista por Mariana Oliveira e Luciana Guedes, equipe da Anistia Internacional Brasil
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