Novas evidências coletadas pela Anistia Internacional apontam que operações de controle da fronteira marítima da Austrália se assemelham a um negócio sem lei, com evidências de atividade criminal, pagamentos a tripulações de navios e tratamento abusivo de homens, mulheres e crianças procurando asilo.
Através de entrevistas com solicitantes de asilo, uma tripulação e a polícia indonésia, um novo relatório – “By hook or by crook” – mostra evidências de que, em maio de 2015, oficiais australianos trabalhando na Operação Fronteiras Soberanas pagaram 32 mil dólares a seis membros da tripulação, que estavam levando 65 pessoas que buscavam asilo na Nova Zelândia, para que levassem essas pessoas para a Indonésia. Os australianos ainda forneceram mapas aonde a tripulação deveria aportar na Indonésia.
Testemunhas oculares, apoiadas por material em vídeo, revelam como a intervenção dos oficiais australianos pôs em risco a vida daqueles que buscavam asilo, transferindo-os a barcos que não possuíam combustíveis suficientes, além do incidente ser caracterizado em um padrão de abusos de embarcações, conhecido por “turnback” ou “pushback”.
O relatório também aborda se houve pagamento de oficiais australianos a outra tripulação, que deu meia volta em julho.
“Há meses a Austrália tem negado que foi pago para que pessoas fossem contrabandeadas, mas nosso relatório fornece evidências detalhadas indicando um cenário diferente”, afrima Anna Shea, pesquisadora sobre refugiados da Anistia Internacional.
“Todas as evidências indicam que os oficiais australianos cometerem um crime transnacional ao direcionar operações de contrabando de pessoas, pagando a uma tripulação e os instruindo em como e aonde chegar à Indonésia. O contrabando de pessoas é um crime geralmente associado com indivíduos, e não governos – mas nós temos fortes evidências de que os oficiais australianos não estão apenas envolvidos, mas também direcionando essas operações”.
“Em dois incidentes documentados pela Anistia Internacional, a força da fronteira e oficiais da Marinha também colocaram a vida de dezenas de pessoas em risco ao forçá-las a mudar para embarcações com baixo nível de equipamentos. Quando se fala em tratamento àqueles que buscam por asilo, a Austrália é um estado sem lei”.
O incidente de Maio de 2015
Desde o primeiro anúncio midiático do incidente, os oficiais do governo australiano negaram repetidamente o pagamento de contrabandistas de pessoas e alegaram que a patrulha da fronteira estava respondendo a um barco em emergência no mar.
Contudo, a tripulação do barco – entrevistada pela Anistia Internacional na Indonésia em agosto, onde eles estão sob custódia da polícia – assim como os passageiros, que também foram entrevistados, disseram que o barco não estava enfrentando problemas e eles nunca pediram por ajuda.
A primeira aproximação foi feita pelos oficiais de controle de fronteira em 17 de maio de 2015, e depois em 22 de maio. A maioria dos passageiros – incluindo uma mulher grávida, duas crianças de sete anos e um infante – embarcaram em um barco da força de fronteira após saberem que poderiam tomar banho lá. Ao embarcar eles foram mantidos em celas por cerca de uma semana. Alguns tiveram seu acesso negado a seus medicamentos e a cuidados médicos.
No barco original, os seis tripulantes disseram que os oficiais australianos deram o total de US$ 32,000. Pelo menos uma das pessoas que buscavam asilo testemunhou a transação e deu seu testemunho à Anistia Internacional. A polícia da Indonésia confirmou à Anistia Internacional que essa quantia foi encontrada com a tripulação quando eles foram presos ao chegar no país.
A investigação da Anistia Internacional é baseada em entrevistas com os 62 adultos que buscavam asilo, os oficiais da Indonésia e os seis membros da tripulação. A organização também teve acesso a evidências documentais cruciais, como as fotos e o vídeo feito pelos próprios passageiros durante a jornada. A polícia da Indonésia também mostrou à pesquisadora da Anistia Internacional o dinheiro que eles confiscaram dos seis tripulantes – em notas de cem dólares.
Em 31 de Maio, oficiais australianos transferiram a tripulação e as pessoas que buscavam asilo em dois outros barcos menores, e foram dadas instruções para que eles fossem a Ilhas Roti, na Indonésia, assim como um mapa mostrando aonde atracar. Os dois barcos tinham pouco combustível e um acabou sem enquanto estava navegando. Os passageiros, assustados, foram forçados a fazer uma transferência por fundeio ao outro barco, aonde foram resgatados por indonésios após bater em um recife.
O incidente de Julho
“By hook or by crook” mostra outro caso de possível pagamento por oficiais australiano para uma tripulação para contrabandear pessoas para a Indonésia em julho 2015. Esse caso, ao contrário do incidente de maio de 2015, não recebeu muita atenção da mídia. Os oficiais australianos, nesse caso, aparecem dando direções à tripulação para levar as pessoas a Ilha Roti na Indonésia. Passageiros que estavam no barco disseram à Anistia Internacional que eles foram interceptados pela Marinha de Fronteira da Austrália em 25 de julho, e colocados em um novo barco em 1 de agosto. A tripulação tinha duas novas malas que os passageiros não tinham visto antes. Quando os passageiros suspeitaram e ameaçaram abrir as malas, os australianos disseram repetidas vezes que não o deveriam fazer.
Esses incidentes aconteceram no contexto da Operação de Fronteira Soberana da Austrália (OSB, sigla em inglês), uma operação militar de controle da fronteira lançada em 2013 para impedir qualquer um – incluindo refugiados e pessoas que procuram asilo – de chegar a Austrália irregularmente por vias marítimas.
A Anistia Internacional pede para uma Comissão Real investigar a operação fronteiras soberanas, para investigar e reportar as alegações de atividades ilegais e criminais cometidos pelos oficiais do governo australiano.
Apesar das insistentes alegações que a OSB é designada para “salvar a vida no mar”, a Anistia Internacional e muitos outros documentaram o padrão abusivo e ilegal de pushbacks por autoridades australianas.
Outras pessoas que buscam asilo na Indonésia contaram à Anistia Internacional como eles também estiveram envolvidos em pushbacks marítimos por oficiais australianos, que segundo eles, usaram abusos físicos e verbais contra aqueles a bordo dos navios.
Esses turnbacks violam o princípio de “repulsão”, que diz que refugiados não podem ser enviados de volta aos seus países aonde eles tem sua vida em risco, assim como negar o acesso ao pedido de asilo dessas pessoas.
Segundo Anna She, “A Operação Fronteiras Soberanas, longe de salvar vidas, se tornou sinônimo com o abuso de algumas das pessoas mais vulneráveis do mundo. A Austrália precisa de uma vez por todas começar a cumprir imediatamente as suas obrigações internacionais em relações aos refugiados. Todas as pessoas buscando asilo merecem ter seu pedido visto de maneira justa. E ao invés de continuar com turnbacks, a Austrália deve se engajar em um diálogo efetivo para que a integração regional seja melhorada para pessoas vulneráveis na região da Ásia-Pacífico, expandindo rotas seguras e legais para que as pessoas cheguem em segurança”.
CONTEXTO
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção) define as obrigações legais dos estados para cooperar, prevenir e combater o crime organizado transnacional. O Protocolo contra o Contrabando de Migrantes por Terra, Mar e Ar (Protocolo de Contrabando) que suplementa a Convenção, requer que os Estados previnam e combatam o contrabando de migrantes e proteja os direitos de pessoas contrabandeadas. A Austrália ratificou a Convenção. O Protocolo de Contrabando requer que os signatários criminalizem o contrabando o tráfico de migrantes, que é definido como o “a aquisição, a fim de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou material, da entrada ilegal da pessoa em um Estado na qual essa pessoa não é um nacional ou residente permanente”.
O contrabando de pessoas é um crime transnacional, embora as pessoas que são contrabandeadas não são criminosas, e o Direito Internacional proíbe os Estados de penalizar aqueles que buscam asilo apenas pela maneira de sua entrada no país.
Sob o Protocolo de Contrabando, os modos de comissão – em outras palavras, as maneiras na qual alguém pode ser responsabilizado – de um crime de contrabando incluem cometer o delito, a tentativa de cometer uma infração, a participação como cúmplice em um delito e organizar e dirigir outras pessoas para cometê-lo.
A evidência coletada pela Anistia Internacional sobre os eventos de maio de 2015 indica que por volta de 24 de maio, os oficiais australianos parecem organizar ou direcionar a tripulação para cometer o delito de contrabando de pessoas. As ordens eram sob a lei australiana dos oficiais, assim como o material de assistência (os dois barcos, combustível, mapas e GPS) que o delito de contrabandear pessoas para a Indonésia aconteceu. O modo de entrada na Indonésia que, segundo a tripulação, foi dado pelos oficiais australianos – atracar em pontos específicos da Ilha Roti ao invés de se apresentar a força de fronteira indonésia e completar os requisitos para a entrada a barco na indonésia – é considerado ilegal nos termos do Protocolo de Contrabando. Os US$ 32,000 constituem benefício financeiro para a tripulação buscar esses meios de entrada ilegais. Os oficiais australianos que pagaram a tripulação e os instruíram a atracar na Ilha Roti em maio de 2015 também podem ter participado como cúmplices no crime transnacional de contrabando de pessoas.