O julgamento sobre a responsabilidade da polícia no massacre do Carandiru, ocorrido há duas décadas, pode sinalizar o início do fim de um longo legado de impunidade, diz a Anistia Internacional. De acordo com organizações de direitos humanos, o fracasso das autoridades brasileiras em responsabilizar os autores do massacre reforçaram os abusos que há muitos anos caracterizam o sistema penitenciário brasileiro.
Mais de 20 anos após a polícia militar de São Paulo ter reprimido uma rebelião no Carandiru, matando 111 presos, 26 policiais acusados de matar 15 do total de presos mortos serão julgados a partir de hoje (15), após adiamento na última semana. Este será o primeiro dos quatro julgamentos previstos sobre o massacre.
“O julgamento pode significar uma mudança”, disse Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil. “Por muitos anos, o atraso em responsabilizar os autores do massacre foi um sinal muito negativo da justiça do país. Agora, esperamos finalmente que esta impunidade chegue ao fim”, afirma.
A Anistia Internacional defende que não apenas os policiais envolvidos diretamente no massacre enfrentem a justiça, mas também a cúpula da segurança do Estado e o governador à época. “No Carandiru, não há dúvidas sobre o excessivo uso da força e há fortes evidências que apoiam as suspeitas de que a polícia cometeu execuções extrajudiciais”, afirma Roque.
Diversos fatores levaram a atrasos no julgamento, o principal deles seria o conflito entre a jurisdição da justiça militar e da justiça civil sobre o caso. “Seja por negligência ou conivência, o sistema de justiça ignorou ou, pior, mostrou completo desprezo pelo conceito de justiça e pelos direitos daqueles que foram brutalmente, e sem constrangimentos, assassinados no Carandiru”, completa.
O processo judicial contra o Coronel Ubiratan Guimarães, comandante da tropa de polícia que foi enviada para restabelecer a ordem no presídio, é um excelente exemplo do descaso das autoridades brasileiras para as graves violações de direitos humanos que ocorreram na prisão. Em julho de 2001, Guimarães foi sentenciado a mais de 600 anos de prisão por um tribunal de São Paulo. No entanto, em fevereiro de 2006, um órgão especial do Tribunal de Justiça do estado anulou a condenação, afirmando que Guimarães agiu em estrita consonância com seus deveres e estava seguindo ordens superiores.
“O massacre do Carandiru está relacionado a dois problemas sistêmicos que continuam a assolar o sistema penitenciário brasileiro: a tortura somada às condições cruéis, desumanas e degradantes em centros de detenção em todo o país, e a relutância das autoridades em resolver esses problemas, seja através de reformas eficazes ou da investigação e repressão dos criminosos, diz Roque.
De acordo com a Anistia Internacional Brasil, esses problemas pioraram nos últimos 20 anos. A população carcerária brasileira cresceu de 114.377 em 1992 para 514,582 em 2011, de acordo com dados do Ministério da Justiça.
Informações sobre o caso
Em 2 de outubro de 1992, uma rebelião estourou na Casa de Detenção em São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru. O conflito teve início com uma briga entre os prisioneiros, que acabou tomando conta de todo o Pavilhão 9 do presídio. Tropas de choque da polícia militar invadiram a prisão para conter a rebelião. Quando eles se retiraram, 11 horas depois, 111 presos estavam mortos.
Vinte e quarto horas depois do massacre, uma delegação da Anistia Internacional entrou no presídio e encontrou fortes evidências de graves violações de direitos humanos por parte da Tropa de Choque de São Paulo. Em um relatório abrangente sobre o resultado da operação policial – A morte chegou. Massacre na Casa de Detenção em São Paulo –, a organização afirmou: “… tornou-se claro que os prisioneiros indefesos foram massacrados a sangue frio. Prisioneiros feridos foram mortos a tiro, assim como os prisioneiros que haviam sido encomendados para remover os corpos das celas …. Embora houvesse três juízes presentes, incluindo o juiz sênior responsável pelas prisões, não foi feito nenhum esforço para evitar o que ocorreu”.
O relatório da Anistia Internacional foi citado na íntegra como prova no julgamento do Cel. Ubiratam Guimarães e pode ser encontrado aqui.
Setenta e nove policiais envolvidos no massacre serão julgados em quatro diferentes julgamentos este ano – serão examinadas a ação dos policiais em cada um dos quatro andares do Pavilhão 9 do presídio Carandiru. Até a realização destes julgamentos, a maioria dos acusados de serem os responsáveis pelo massacre nunca foram responsabilizados. Grande parte deles continuou trabalhando na polícia até sua aposentadoria e um terço deles ainda está ativo na PM.