Mais de 1,5 milhão de pessoas fugiu da Síria para refugiar-se no estrangeiro, fundamentalmente na Turquia, Jordânia, Líbano e Iraque. E esta cifra se triplica se falarmos das pessoas deslocadas internamente na Síria: algumas vivem apinhadas em casas de familiares e amigos, e outras ficaram aprisionadas em campos para pessoas deslocadas, em condições atrozes, perto da fronteira com a Turquia.
Donatella Rovera, investigadora da Anistia Internacional, visitou em várias ocasiões campos para pessoas internamente deslocadas, a última vez em março.
Por que as pessoas acabam nestes campos?
As pessoas que se refugiam em campos para deslocados fugiram dos bombardeios indiscriminados lançados pelas forças governamentais, que mataram e mutilaram dezenas de milhares de civis em povoados e cidades por toda a Síria.
Algumas foram deslocadas várias vezes antes de chegar aos campos próximos à fronteira. Cada vez que fugiam para uma região que consideravam segura, esse lugar acabava sendo bombardeado também e tinham que fugir outra vez.
Uma das mulheres com as qual falei tinha tentado refugiar-se em cinco locais diferentes, que acabavam sendo atacados, antes de finalmente chegar a um campo para pessoas deslocadas.
O que viu nos campos da Síria?
As condições são terríveis. Há pouca comida, os serviços de higiene e saneamento são escassos ou inexistentes, e o alojamento é muito precário.
Muitas das pessoas deslocadas que estavam no campo esperavam cruzar a Turquia e encontrar um lugar nos campos de refugiados que há ali (onde as condições são muito melhores), mas, lamentavelmente, a entrada na Turquia está restringida desde agosto do ano passado, de modo que estão aprisionadas nestes campos para deslocados que foram sendo criados de forma improvisada e caótica perto da fronteira. A situação é desesperadora, porque muito pouca ajuda chega aos campos da Síria.
As famílias fugiram praticamente sem nada, na maioria das vezes apenas com a roupa do corpo. Haviam destruído sua casa, ficaram sem nada; outras se foram pensando que estariam fora apenas uns dias. Em outros casos, simplesmente não puderam ficar com nada porque tinham que levar seus filhos, e iam a pé ou se deslocavam em veículos abarrotados de gente.
Na última vez que estive lá, em março, fazia frio e chovia muito, e a terra argilosa se havia convertido em um lodaçal escorregadio. Não havia tendas suficientes, e muitas tinham goteiras ou eram tão frágeis que o vento as levava. As pessoas se queixavam de que não havia alimentos suficientes. Eu mesma vi como distribuíam uma comida que consistia em uma pequena ração de sopa de lentilhas aguada.
Quem são as pessoas mais afetadas?
A maioria das pessoas refugiadas e deslocadas são mulheres, meninos e meninas, e pessoas idosas.
Isto ocorre porque os homens frequentemente ficam para trás para participar dos combates ou, segundo dizem, para cuidar de seus bens, porque temem –com razão– que caso não os vigiem acabarão sendo saqueados.
O que as pessoas mais temem?
Não há dúvida de que o conflito é sua maior preocupação. As pessoas temem por sua segurança e pela de seus entes queridos. A situação se deteriorou rapidamente nos últimos meses, e todos os dias há um grande número de mortos e feridos entre a população civil. Desde que as forças governamentais começaram a lançar ataques aéreos diários em agosto passado, a cifra de civis mortos e feridos aumentou drasticamente, e o mesmo ocorreu com o número de deslocados.
Muitas das pessoas que entrevistei em povoados e cidades do norte da Síria agora estão deslocadas; algumas ficaram na Síria, enquanto que outras saíram dali e se converteram em refugiadas. Temem pelos familiares que ficaram em outras áreas do país, onde o conflito é intenso.
Qual é a situação das pessoas refugiadas fora da Síria?
Mais de 1,5 milhão de sírios converteram-se em refugiados, a maioria nos países vizinhos como Líbano, Jordânia, Turquia e Iraque. Alguns estão em campos de refugiados, enquanto outros ficaram com amigos e familiares ou em alojamentos alugados.
As condições nos campos de refugiados são diversas: na Turquia são relativamente melhores, enquanto que na Jordânia são muito mais difíceis. Os órgãos humanitários da ONU tem mostrado reiteradamente sua preocupação com as dificuldades encontradas para arrecadar os fundos necessários que lhes permitam atender o crescente número de refugiados sírios. A maioria das pessoas refugiadas são mulheres, meninos e meninas, que podem estar em uma situação especialmente vulnerável e frequentemente tem necessidades especiais.
Mas o problema das pessoas refugiadas e deslocadas é um sintoma. O problema fundamental é o modo pelo qual o conflito está se desenrolando: o profundo desprezo mostrado para com as normas do direito internacional humanitário acarreta muito sofrimento, destruição e morte.
Como você avalia o que o mundo tem feito em relação à Síria?
No que diz respeito ao conflito em si, a comunidade internacional fracassou estrondosamente na hora de adotar medidas concretas para pressionar as partes relevantes. Se, no princípio, quando começou o levante, tivesse sido exercida uma pressão combinada, ter-se-ia impedido que a situação desembocasse no perigoso conflito armado que vemos hoje em dia.
Em relação à assistência oferecida aos refugiados, de novo são os países vizinhos os que assumem a maior parte do encargo. Eles têm respondido de diversos modos. Até agora, o conjunto da comunidade internacional não compartilhou de modo efetivo a responsabilidade nem contribuiu para satisfazer as necessidades de uma população de refugiados que aumenta com grande rapidez.
E, em relação à assistência e ajuda humanitária oferecida para as pessoas que se converteram em deslocados internos, a comunidade internacional tampouco chegou a muitas das pessoas necessitadas, especialmente as que se encontram em zonas controladas pelas forças de oposição.
Isto se deve a várias razões: a insegurança derivada do conflito e da atuação de todas as partes implicadas e as restrições impostas pelo governo sírio, que não permite que os órgãos da ONU possam deslocar-se livremente pelo país nem chegar a regiões controladas pela oposição cruzando a fronteira da Turquia. No entanto, segundo o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, este seria o modo mais seguro e efetivo.
O que devem fazer os governos?
Para melhorar a prestação da assistência e ajuda humanitária que com tanta urgência necessitam as pessoas internamente deslocadas na Síria, a comunidade internacional deve ser mais contundente ao exercer pressão sobre as autoridades sírias para que permitam que os órgãos da ONU e outras organizações internacionais de ajuda humanitária possam chegar sem tantos obstáculos a todas as pessoas necessitadas, e para isso devem, entre outras coisas, permitir o acesso às áreas relevantes desde outros países e também através da linha de fogo.
Ao mesmo tempo, a comunidade internacional deve pressionar os líderes políticos e militares de todos os grupos armados de oposição na Síria para que garantam que os grupos armados que agem no local não dificultem as operações de ajuda humanitária das organizações dedicadas a este fim, nem ameacem a segurança de seu pessoal.
Em relação às pessoas que conseguiram fugir da Síria para países vizinhos, o mínimo que a comunidade internacional pode fazer é oferecer proteção e assistência aos que saíram do país. É fundamental que a comunidade internacional aja com decisão oferecendo apoio econômico e de outros tipos à região, e reassentando as pessoas refugiadas mais vulneráveis em outros países seguros.
O que o futuro reserva para a população síria?
Há um ano se considerava que a situação era muito difícil, e, embora se especulasse que iria piorar, ninguém pensava que se deterioraria até o ponto que está hoje. No momento, nada leva a crer que essa tendência negativa vá mudar em um futuro próximo.
As forças governamentais estão bombardeando implacavelmente as zonas controladas pela oposição; a população civil acaba sendo vítima destes ataques e, por sua vez, sofre os abusos cometidos por grupos armados de oposição e fica aprisionada no fogo cruzado entre ambos os grupos. As pessoas que foram deslocadas não podem regressar, e a cada dia mais pessoas se veem obrigadas a abandonar seus lares. Muitas perderam tudo. O custo humano e material é impressionante.
Apesar dos intermináveis debates sobre iniciativas políticas para resolver o conflito, os líderes mundiais tem sido incapazes de superar suas diferenças. A população civil síria continua pagando o preço deste fracasso.
Para que isto mude, em todas as iniciativas deve-se dar prioridade à proteção da população civil e à prestação de contas pelos crimes sob o direito internacional, com medidas como a remessa de informações sobre a situação na Síria ao procurador do Tribunal Penal Internacional. A população civil não pode ficar à mercê de um acordo difícil de alcançar, nem as diversas partes podem utiliza-la como trunfo para marcar um ponto político.
* Este artigo faz parte de uma série especial sobre “Pessoas em movimento” que destaca as violações de direitos humanos que sofrem as pessoas imigrantes, refugiadas e solicitantes de asilo em todo o mundo. Estes perfis são publicados em conexão com a apresentação do Relatório 2013 da Anistia Internacional. Veja outros textos no site www.amnesty.org