Na esteira dos atentados atrozes em Paris, na última sexta-feira, a União Europeia (UE) deve resistir ao desejo de fechar ainda mais firme suas fronteiras externas, medida que só continuaria a alimentar uma variedade de abusos de direitos humanos ao mesmo tempo em que nada faria para interromper o fluxo de refugiados desesperados que rumam para a Europa em fuga da perseguição e da violência, , disse a Anistia Internacional, em novo relatório publicado nesta terça-feira (19).
A organização de direitos humanos apela pela criação de rotas seguras, legais e reguladas de entrada na Europa, assim como de processos de avaliação de requerimento de asilo justos, eficientes e rigorosos que sejam capazes de dar resposta aos refugiados que procuram proteção na Europa e identificar possíveis ameaças à segurança.
“Fear and Fences: Europe’s approach to keeping refugees at bay” (Medo e vedações: a abordagem da Europa para manter os refugiados à distância) revela como as medidas para fechar as fronteiras terrestres e alinhar os países vizinhos – como a Turquia e Marrocos – como guarda-portões do espaço europeu têm vindo a negar aos refugiados o acesso a asilo, a expor estas pessoas a maus-tratos e a empurrar refugiados e migrantes para viagens marítimas de elevadíssimo risco de vida.
“A expansão das vedações ao longo das fronteiras europeias apenas entrincheiraram violações de direitos humanos e exacerbaram os desafios que se colocam na gestão dos fluxos de refugiados de forma humana e pacífica”, sustenta o diretor da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central, John Dalhuisen.
“Ceder ao medo na esteira dos ataques atrozes de Paris não irá proteger ninguém. As pessoas que fogem da perseguição e dos conflitos não vão desaparecer, nem vai desaparecer o direito que têm a ser protegidas. Depois desta tragédia, o falhanço em prestar solidariedade a quem procura abrigo na Europa, que frequentemente está em fuga do mesmo tipo de violência, será uma abdicação cobarde da responsabilidade, e também significará uma vitória trágica para o terror sobre a humanidade”, prossegue o perito.
John Dalhuisen frisa ainda que “enquanto houver violência e guerra, as pessoas vão continuar a vir e a Europa tem de encontrar melhores maneiras de providenciar proteção”. “A União Europeia [UE] e os países-membros na linha da frente têm de repensar a maneira de garantirem acesso seguro e legal ao espaço europeu, tanto nas suas fronteiras terrestres externas como nos países de origem e de trânsito. E isto pode ser conseguido através do aumento do recurso aos mecanismos de reinstalação, de reunificação de famílias e de vistos humanitários”, explica.
Este novo relatório da Amnistia Internacional e um novo briefing publicado também esta terça-feira pela Human Rights Watch – intitulado “Europe’s Refugee crisis: An Agenda for Action” – apresentam recomendações detalhadas em que se exorta a União Europeia e os seus Estados-membros a fazerem muito mais para enfrentar a atual crise global de refugiados.
O preço das cercas na Fortaleza Europa
No total, os Estados membros da UE construíram 35 km de cercas nas fronteiras externas da União Europeia, a um custo de 175 milhões de euros. Isso inclui:
· Uma cerca de 175 km ao longo da fronteira entre Hungria e Sérvia
· Uma cerca de 30 km ao longo da fronteira entre Bulgária e Turquia – que ainda ganhará mais 130 km de extensão
· 18,7 km de cercas ao longo das fronteiras dos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla com o Marrocos, e
· Uma cerca de 10,5 km na região de Evros, ao longo da fronteira entre Grécia e Turquia.
Em vez de evitar a entrada de refugiados, essas cercas apenas redirecionam os fluxos migratórios para outras rotas terrestres ou rotas perigosas por via marítima. Segundo a agência da ONU para Refugiados (ACNUR), em 2015, o número de refugiados que chegaram à UE por via marítima atingiu a marca de 792.883 em novembro – comparado com os 280.000 que chegaram por via terrestre e marítima durante todo o ano de 2014. Até agora, 647.581 pessoas chegaram à Grécia pelo mar este ano, 93% delas vindas dos 10 países que mais produzem refugiados no mundo.
Este ano, até o dia 10 de novembro, 512 haviam perdido a vida no mar Egeu e quase 3.500 morreram no Mediterrâneo.
Expulsões e outras violações nas fronteiras
Pessoas que tentaram cruzar as fronteiras da Grécia, da Bulgária e da Espanha contaram à Anistia Internacional como foram expulsos pelas autoridades da fronteira sem acesso aos procedimentos de pedido de asilo ou a chance de apelar contra seu retorno, numa direta violação das leis internacionais. Expulsões com frequência são acompanhadas de violência e colocam a vida das pessoas em risco.
Um refugiado sírio de 31 anos descreveu o procedimento típico de expulsão na fronteira terrestre da Grécia com a Turquia em abril deste ano:
“Eles nos levaram para a margem do rio e nos mandaram ficar de joelhos. Estava escuro – por volta das 20h30. Havia outras pessoas lá que também estavam sendo mandadas de volta para a Turquia. Um dos policiais me bateu nas costas… Ele me bateu nas pernas e na minha cabeça com um bastão de madeira. Eles nos levaram para mais perto do rio e mandaram que não nos mexêssemos e ficássemos quietos. Eles me separaram do resto do grupo e começaram a nos dar socos e pontapés enquanto estávamos caídos. Eles me seguraram pelos cabelos e me empurraram na direção do rio.”
Uma pesquisa da Anistia Internacional mostrou que expulsões na fronteira entre Grécia e Turquia são rotineiras e continuam acontecendo também na fronteira entre Bulgária e Turquia.
Em março de 2015, a Espanha adotou uma legislação que legaliza a expulsão de imigrantes e refugiados de Ceuta e Melilla, os dois enclaves espanhóis no Norte da África, na fronteira com o Marrocos, pela Guarda Civil. Em setembro, a Hungria estabeleceu zonas de trânsito em sua fronteira com a Sérvia para mandar os refugiados em busca de asilo de volta para a Sérvia depois de procedimentos dúbios.
“Onde há cerca, há violações dos direitos humanos. Expulsões ilegais de refugiados em busca de asilo se tornaram rotina em todas as fronteiras externas da UE localizadas nas principais rotas migratórias e ninguém está fazendo nada para impedi-las,” declarou John Dalhuisen.
“Regular a entrada à UE é uma coisa. Negá-la aos refugiados é algo completamente diferente. A primeira medida é sensata e legítima, enquanto a segunda é desumana e ilegal – e tem que parar..”
Numa medida alternativa para manter refugiados e imigrantes fora da Europa, a UE e seus Estados membros estão procurando cada vez mais transformar países de terceiro mundo em “gatekeepers”, ou leões de chácara.
Os leões de chácara da Europa
A última proposta apresentada para um plano de ação conjunto entre UE e Turquia determina que esta última tem como dever “impedir a imigração irregular”. O acordo não menciona as violações aos direitos que refugiados e imigrantes enfrentam por lá. Nos últimos meses, a Turquia está detendo e interceptando imigrantes e refugiados em busca de asilo sem permitir que eles tenham acesso a advogados. Além disso, está mandando de volta, à força, os refugiados de Síria e Iraque, numa clara violação das leis internacionais. Muito refugiados que não vieram da Síria esperam mais de cinco dias para saber o resultado de seu pedido de asilo.
Guardas da fronteira do Marrocos também estão sendo cúmplices nos maus-tratos das pessoas que tentam pular as cercas ao redor dos enclaves espanhóis, enquanto as reformas no sistema de pedidos de asilo ainda precisam se tornar mais efetivas no país.
“A UE não deve pedir que Estados que não respeitam os direitos de refugiados e imigrantes ou não podem fazê-lo se encarreguem de seu trabalho sujo. Os países vizinhos deveriam ser auxiliados na criação de sistemas de recepção e asilo. Eles não deveriam funcionar como leões de chácara com evidente desrespeito pelas consequências de suas ações para refugiados e imigrantes,” declarou John Dalhuisen.
Recomendações à UE
A UE pode e deve implementar uma série de medidas factíveis e realistas para lidar com a crise global de refugiados e garantir a proteção das centenas de milhares de pessoas que já chegaram à Europa.
“A crise global de refugiados representa um grande desafio para a UE, mas está longe de ser uma ameaça à sua existência. A UE precisa tomar providências que não incluam medo e cercas, mas a melhor tradição dos valores pelos quais alega se pautar,” declarou John Dalhuisen.
A Anistia Internacional pede que a UE e seus Estados membros:
· Abram rotas seguras e legais, inclusive aumentando as iniciativas de reassentamento, reunificação familiar e admissões e vistos humanitários;
· Garantam que os refugiados tenham acesso a território e asilo nas fronteiras externas da UE;
· Coloquem um fim nas expulsões e outras violações dos direitos humanos nas fronteiras, sobretudo através de investigações efetivas sobre as alegações de maus-tratos em nível nacional, e por procedimentos da Comissão da UE nos casos em que as leis da União Europeia foram violadas;
· Aumentem significativamente a capacidade de recepção e assistência humanitária de curto prazo; e
· Acelere e aumente a implementação de um esquema de realocação para pessoas em busca de asilo.