Os ataques aéreos e bombardeios constantes e implacáveis por parte das forças do governo sírio está ampliando o sofrimento dos civis encurralados, sob cerco, e enfrentando uma crise humanitária ascendente no Leste de Ghouta, disse a Anistia Internacional em um novo relatório.
‘Left to die under siege’: War crimes and human rights abuses in Eastern Ghouta, Syria (“Deixados para morrer sob cerco”: crimes de guerra e violações dos direitos humanos no Leste de Ghouta, Síria) revela provas contundentes de crimes de guerra e descreve o cerco do governo sírio no Leste de Ghouta e o assassinato ilegal de seus civis sitiados, que ocorre como parte de um amplo e sistemático ataque contra a população civil, configurando-se como crimes contra a humanidade. O relatório também destaca a luta agonizante de mais de 163 mil pessoas que vivem em estado de sítio no Leste de Ghouta para sobreviver, bem como expõe os abusos cometidos por grupos armados não estatais na área.
“Por quase três anos as vidas dos civis do Leste de Ghouta foram devastadas pelo derramamento de sangue e tragédia. Eles estão presos e cercados por lutas em todas as frentes, sem meios de escapar dos ataques aéreos ilegais e bombardeios executados pelas forças do governo. Seu sofrimento é agravado pela diminuição dos suprimentos de comida, água potável e outros bens essenciais, o que significa que a vida diária para muitos se tornou uma experiência prolongada de dificuldades e sofrimento”, disse Said Boumedouha, Diretor do Programa da Anistia Internacional para o Oriente Médio e Norte de África.
Crimes de guerra cometidos pelas forças do governo
Entre janeiro e junho 2015, forças governamentais sírias realizaram pelo menos 60 ataques aéreos no Leste de Ghouta, matando cerca de 500 civis. O relatório documenta 13 ataques aéreos e outros ataques característicos de crimes de guerra que mataram 231 civis e apenas três combatentes. Em 10 casos não puderam ser identificados quaisquer alvos militares nas imediações, sugerindo que os ataques foram direcionados diretamente contra os civis ou, na melhor das hipóteses, foram indiscriminados. Nos três casos restantes, os ataques parecem totalmente desproporcionais ou então indiscriminados.
Muitos lugares públicos repletos de civis foram atingidos, incluindo um mercado público lotado, uma escola enquanto os estudantes estavam nas proximidades, e imediações de uma mesquita logo após as orações de sexta-feira.
Análise de imagens de satélite mostram que os ataques aéreos realizados entre 28 de dezembro e 10 de fevereiro destruíram completamente vários edifícios residenciais nas imediações da Mesquita Taha em Douma. Uma testemunha disse que viu nove corpos espalhados nas ruas perto da mesquita, mortos por um ataque aéreo em 9 de fevereiro. Ela acrescentou que os edifícios residenciais, um hospital de campo subterrâneo e uma escola também foram destruídas.
No mesmo dia, Amir testemunhou outro ataque em outra mesquita em Douma. Ele descreveu à Anistia Internacional como famílias deslocadas, incluindo crianças, foram mortas no ataque que atingiu a Mesquita de al-Ansar em Douma, onde tinham procurado refúgio. “Nenhum lugar é seguro”, disse ele.
Mercados públicos também estão na lista de alvos do governo sírio. “Foi um desastre”, disse uma testemunha que descreve as consequências do ataque no mercado em Kafr Batna em 5 de fevereiro. Moradores disseram que o ataque ocorreu à uma hora da tarde – a “hora mais movimentada do dia” – e também destruiu dois edifícios residenciais próximas. Não havia indício de qualquer alvo militar nas proximidades.
Em um ataque chocante e semelhante, em 25 de janeiro, jatos da força aérea síria bombardearam um mercado em Hamouria, logo após as orações da sexta-feira, com multidões de pessoas espalhadas próximas à mesquita para comprar açúcar, vendido naquele dia a um preço com desconto, matando mais de 40 civis. “Eu só podia ver sangue. Foi horrível, como nada que eu tenha visto antes”, disse uma testemunha ocular.
“O momento e o local desses ataques parecem deliberadamente orquestrados para maximizar os danos ou as vítimas civis em uma tentativa macabra das forças do governo sírio para aterrorizar a população. Todos os ataques contra civis e edifícios civis ou infraestrutura devem terminar”, disse Said Boumedouha.
Forças do governo sírio também dispararam repetidamente foguetes e morteiros de forma imprecisa ou bombas não guiadas sobre áreas povoadas, em uma série de ataques diretos e indiscriminados contra civis, os quais constituem crimes de guerra.
“Ao bombardear repetidamente áreas densamente povoadas em uma série de ataques diretos, indiscriminados e desproporcionais, bem como sobre civis sitiados ilegalmente, as forças governamentais sírias cometeram crimes de guerra e mostram uma frieza sinistra contra civis do Leste de Ghouta”, disse Said Boumedouha.
A vida sob cerco – uma luta para sobreviver
Além dos bombardeios diários, as condições de vida para os civis do Leste de Ghouta têm continuado a deteriorar-se. Os residentes têm acesso limitado a alimentos, água potável ou cuidados médicos e suprimentos essenciais, incluindo eletricidade e combustível. Postos de controle dominados seja pelas forças governamentais ou pelos grupos armados restringem seus movimentos dentro e fora do Leste de Ghouta. As forças do governo também negaram a agências da ONU e a outros grupos humanitários acesso livre à área.
Mais de 200 pessoas morreram de fome ou por conta da falta de acesso a cuidados médicos adequados no Leste de Ghouta entre 21 de outubro de 2012 e 31 de janeiro de 2015, de acordo com a Sociedade Síria-Americana de Medicina.
Um emergente mercado negro de “economia de guerra” tem permitido a traficantes e membros de grupos armados ou funcionários do governo obter lucro às custas dos civis. Forças do governo sírio rotineiramente confiscam alimentos em postos de controle, obrigando os moradores a comprar bens no mercado negro, muitas vezes pagando até 10 vezes o preço das mercadorias no centro de Damasco.
Marwan, um residente de Jesrine, disse que tinha perdido mais de 15 kg de peso por causa do cerco. Ele passava dias sem comer, a fim de garantir que seus quatro filhos e esposa pudessem comer uma vez por dia. “O que será preciso para que as Nações Unidas façam algo sobre isso? A fome é a única resposta?”, ele disse.
“As forças do governo estão usando a fome como arma de guerra em violação flagrante do direito internacional. Retenção de alimentos e de suprimentos básicos necessários para sobreviver é um ato perverso de crueldade que equivale a punição coletiva da população civil”, disse Said Boumedouha.
Os moradores também disseram que combatentes do Exército Islâmico (Jaysh al Islam) e suas famílias tinham comida abundante, enquanto os civis foram obrigados a pagar preços extremamente inflacionados.
O relatório revela que os grupos armados não estatais, particularmente o Exército Islâmico, são culpados de uma série de abusos, incluindo raptos, detenções arbitrárias e bombardeios indiscriminados. Seu uso de armas imprecisas, como morteiros e foguetes Grad em áreas povoadas equivale a crimes de guerra.
“Violações generalizadas por parte do governo sírio não servem como justificativa para o comportamento terrível do Exército Islâmico, que também lançou ataques indiscriminados, não conseguindo proteger os civis e privando-os do acesso a alimentos ou à assistência médica. Os civis do Leste de Ghouta, basicamente, estão presos entre dois lados hostis, os quais estão buscando apenas seu próprio interesse”, disse Said Boumedouha.
Uma ação internacional é necessária
Mais de um ano atrás, o Conselho de Segurança da ONU aprovou duas resoluções destinadas a aliviar o sofrimento dos civis da Síria, exortando todas as partes no conflito a pôr fim aos ataques contra civis, a levantar todos os cercos, a conceder o acesso humanitário sem restrições e a liberar qualquer pessoa que tenha sido arbitrariamente detida. Até agora, no entanto, eles não conseguiram amenizar o sofrimento da maioria dos civis.
“O objetivo destas resoluções foi exatamente proteger os civis e evitar uma catástrofe humanitária em grande escala. No entanto, até agora, o Conselho de Segurança da ONU tem observado que as resoluções continuam a ser abertamente desrespeitadas e a crise se torna cada vez pior, apesar dos compromissos para tomar medidas adicionais para garantir seu cumprimento. Tais passos estão desesperadamente atrasados”, disse Said Boumedouha.
“Não se pode mais permitir que os perpetradores dos crimes contra o direito internacional que estamos testemunhando na Síria escapem da justiça. Enquanto a Rússia bloquear, no Conselho de Segurança, o encaminhamento do exame da situação da Síria para o Procurador do Tribunal Penal Internacional, a justiça continua a ser uma possibilidade distante”, disse Said Boumedouha.
O Conselho de Segurança deve urgentemente impor sanções específicas contra todas as partes em conflito na Síria responsáveis por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, bem como um embargo de armas ao governo sírio. O governo sírio deve garantir o acesso irrestrito à Comissão Internacional de Investigação Independente para o país, bem como outros monitores de direitos humanos, incluindo a Anistia Internacional.
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